O Farol e a Marinheira



O Farol e a Marinheira
Texto escrito por Rebeca Vilaça

Saudosismo. Me sinto velha falando tal palavra, mas ela me leva para longe, para aquelas lembranças de nós dois. Inspiro seu cheiro ainda impregnado na cama, me inebriando momentaneamente com ele. Ouço sua voz sussurrar ao pé do meu ouvido palavras que eu não dei importância à semântica ou ao contexto, eu só escutava o som da sua voz. Vejo os contornos do seu rosto na minha mente com aquele leve esgar de lábios formando um sorriso que me faz automaticamente sorrir. Sinto o seu toque masculino na minha pele que me faz arrepiar. Lembro das suas vagas promessas nunca cumpridas. Do brilho em seu olhar que sempre continha um desejo implícito ali, segundas intenções. Do entrelace dos seus dedos aos meus que eu pensei que nunca seriam desfeitos. Dos seus beijos ora cálidos ora avassaladores. Das suas risadas esporádicas e da sua seriedade torturante. Lembro de cada detalhe. E são eles que me fazem recordar dos nossos momentos, os quais não voltarão e dos quais tenho saudades. Uma saudade sufocante. Uma saudade doida. Uma saudade com gosto amargo.
Onde está? Para onde vai? O que faz? Queria perguntar. Mas é melhor me calar. Sinto saudade somente dos seus detalhes que não me arrancaram lágrimas, uma noite em claro no estado depressiva, um pós-festa arruinado pelo simples fato de você ter me evitado a noite inteira. Não sinto falta dos detalhes que me afastaram de você e que continuam a me afastar. Não sei para onde vai, mas espero que esteja seguindo o melhor caminho, ainda que esse caminho seja sem mim. Não queria tê-lo deixado só. Não queria ter desistido de você. Mas é impossível lutar contra uma brava maré que me empurra para longe com violência. Eu não tenho forças. Canso fácil. Canso de lutar, porque fico fatigada. A possibilidade de me afogar tentando nadar no meio de ondas selvagens é enorme. Prefiro esperar na praia, segura, olhando para sol que nasce e se põe, completando o ciclo natural e formando uma palheta de cores digna de apreciação. Prefiro me manter longe, longe do perigo.
Queria alcançar o farol para que ele voltasse a brilhar, mas o mar é perigoso com suas ondas em fúria e seus animais misteriosos escondidos no fundo. Como navegar em direção ao farol com um barquinho de madeira singelo? É muito arriscado. E o farol talvez nem deseja que seja novamente ligado. Pelo menos não pela singela marinheira. Almeja aquela capitã do navio que enamorou por longos anos, cujos cabelos se avermelhavam ao toque do sol. A marinheira desistiu. Tentou ao máximo chegar perto do farol, mas não obteve êxito em sua jornada. Se tentasse com mais afinco... Não dá. Ela prefere observar o farol ao longe, na areia, esperando pelo seu brilho que nunca vem. Então ela abraça os joelhos e fixa o olhar ao longe, permitindo que a água das ondas molhe seus pés descalços.
Sinto-me exatamente como a marinheira que se apaixonou pelo farol apagado, cujo brilho só presenciou três vezes. Mas ao contrário dela, decidi não esperar. Decidi andar pela beira-mar para onde o vento me levava. Perdi inclusive meu chapéu no meio desse caminhar. Uma forte brisa soprou-o para longe, para o meio do mar e eu não quis ir buscar. Vou andando descalça sobre a areia, pensando em você, no quanto ainda gosto de você, relembrando seus detalhes. Nossos detalhes que remetem aos nossos momentos. Nossos poucos e curtos momentos. Cada vez que dou um passo, me afasto mais do farol. Adeus. Adeus farol. Não vou esperar pelo seu brilho. Não vou aguardar que decida o que quer da vida. Apenas espero que quando decidir não seja tarde demais para voltar atrás ou seguir em frente.
Eu juro que tentei entende-lo, mais do que possa imaginar, mas nesse tentar, eu me perdi, me esqueci e já não me compreendo mais. Na sua incógnita, eu criei meu automistério e na sua ausência eu senti a minha falta. Ainda sinto saudades de você e ainda te desejo. Não sei o que fazer com esse sentimento. Com esse gostar. Então, vou caminhando por essa areia, deixando o mar tocar os meus pés descalços. Vou caminhando sem saber onde chegar. Vou relembrar de mim para te esquecer. Ou pelo menos tentar. Tentar já é um passo afinal, certo? Espero que sim.

Beijo na Chuva


Beijo na Chuva 
Texto Escrito por Rebeca Vilaça

Ele andava apressado para não tomar chuva, ela caminhava lentamente em seus passos trôpegos para evitar que a gravidade atuasse contra ela. Decidiu que jamais conseguiria acompanha-lo se não mudasse a cena. Então correu na direção dele, pulando em suas costas e agarrando seu pescoço, enquanto aconchegava seu rosto na curva do pescoço dele. Ele se assustou com aquela atitude repentina dela, mas guardou para si qualquer observação que passou pela sua cabeça, deixando o silêncio ser antiteticamente o único barulho entre eles. Carregou-a pelas ruas escuras sob seus passos rápidos que considerava normal. Algumas gotas começaram a cair até se engrossarem. Ambos se encharcaram. Ela então desceu das costas dele e se colocou na frente dele, com um sorriso enorme no rosto que o fez arquear a sobrancelha direita. Antes que se desse conta do significado daquele sorriso, ela colou seus lábios aos dele, beijando-o de súbito. Ele correspondeu. Na falta de oxigênio, houve a separação física. “Só queria saber o gosto do beijo de chuva.” Explicou, piscando para ele que apenas piscou seguidas vezes para tentar entender o que havia se passado ali. Era melhor não entender. Ela estava bêbada de qualquer forma, certo? Continuou a andar, os olhos observando a meninice dela perante a chuva que ainda persistia. Ele decidiu naquele momento que seu sabor predileto era beijo de chuva.

Alice


Alice
Texto escrito por Rebeca Vilaça

Em um momento de um monólogo, uma demorada conversa comigo mesma, sem me importar de parecer louca, porque de louco todos temos um pouco e por que ser normal se você pode ser louco, afinal? Nesse momento em que fui Alice, perdida no meu próprio país das maravilhas, descobri todas as cores da minha essência e ainda descobri que gosto de todas elas. Gosto de cada particularidade minha, mesmo que eu soe louca, maluca, bizarra, estranha, assustadora. Eu gosto, porque é o que me pinta. Esses traços tortos que desenham um rosto e dão vida às minhas feições de garotinha frágil são meus e são bonitos. E eu gosto. Gosto do que sou, mas também gosto de adaptar o que sou ao mundo em que estou, apesar de não gostar muito desse mundo atual. Para uma Alice que busca cores quentes e um romance utópico, o mundo real é cinzento, frio e vazio. Por isso ela foge para seu país das maravilhas, moldado por palavras que se cruzam e formam frases e a partir delas são desenhados diversos personagens. Lá é seguro, lá é confortável, lá é seu refúgio, lá é seu lar. Se enfia em metáforas que dão vida à sua imaginação. Sou tão louca que falo em primeira pessoa para depois falar em terceira. Sou eu, sou Alice, sou duas em uma e uma em duas. Busco o amor em sua forma mais simples, mesmo sem saber amar, e ainda assim sou capaz de também amar. Acredito nele, mesmo dizendo que desacredito. Cheguei a essa singela conclusão nesse monólogo em que eu conversei comigo mesma. Percebi que não dá pra fugir de quem eu sou, não posso me vestir de chapeleira e atuar para sempre, porque sou Alice. Sou a garotinha que quer encontrar um par, que quer namorar e eventualmente se casar. Sou a garotinha que mesmo adulta ainda brinca com crianças, que se diverte com elas e que ri com facilidade. Sou a garotinha que sonha em cuidar e proteger aqueles que ama. Sou a garotinha que almeja deixar uma marca na sociedade, que não quer ter uma vida vazia, que quer viajar e conhecer o mundo, que quer ser grande mesmo sendo tão pequena, que quer viver um romance utópico, que quer beijar debaixo da chuva. Sou a garotinha de laço amarelo na cabeça, esperando um alguém que a complete, porque ela já aceitou que não é completa só com ela mesma, ainda falta uma parte e ela não se importa de ser esse quebra-cabeça incompleto, afinal, ela é assim e se aceitou como é. Ela é a Alice, ela sou eu, perdida em seu próprio país das maravilhas a espera de um único sorriso para admirar. 

Sorrisos


Sorrisos
Texto escrito por Rebeca Vilaça

Bianca não gostava de meio sorrisos e não queria, portanto, meio sorrisos destinados a ela, queria um sorriso por inteiro só pra ela. Mas aquele sorriso, aquele que ela ficava sonhando e redesenhando em sua mente era de outrém e dela jamais voltaria a ser. Bianca é uma menina sonhadora, com ideais utópicos e desejos de uma boneca romântica. Gosta de receber flores para guardar na janela até elas murcharem. Ama ganhar chocolates para comê-los, enquanto saboreia junto com eles a felicidade plena.
Sonha em formar uma família com um cão e três gatos, talvez um papagaio que ensine a gritar o nome do seu tão amado time para o qual torce como se fosse um garoto, xingando palavrões quando o juiz não apita decentemente ou quando os jogadores parecem estarem com ressaca ao correr pelos gramados. Apaixonada com cartas, guarda todas que recebe com carinho em seu baú dos segredos.
Ama também receber elogios, ainda que eles a deixem com aquela carinha vermelha de vergonha, agradecendo docilmente por eles. Gosta de tagarelar e por isso sente necessidade de conversas. Mas às vezes tudo o que deseja é só ficar sozinha em seus momentos de tristeza. Sorrir bobamente quando recebe um singelo "bom dia" em seu celular daquela pessoa que lhe tira suspiros rotineiramente.
Bianca dispende abraços e carinhos a todos que ama, e tem necessidade de recebê-los na mesma quantia. Pode-se dizer que ela é carente na mesma proporção que é dramática. Alegre e divertida são características que ela não abandona por nada desse mundo. Felicidade pra ela é definição de vida. E vida é tudo. E mais um pouco.
Mas ela sabe que falta apenas um ínfimo detalhe para tudo ficar perfeito, não completo, perfeito em sua concepção de mundo róseo. Falta aquele sorriso. Aquele que a faz tremer as pernas. Que a deixa com borboletas no estômago de ansiedade. Aquele simplório sorriso único que ela almeja só para ela. E ela sabe que um dia terá, ainda que não seja o último sorriso com o qual sonhou. Um dia ela terá um sorriso só para ela e esse sorriso tornará sua felicidade mais perfeita do que já é.

Topa Cinema Sexta?


Topa Cinema Sexta?
Texto escrito por Rebeca Vilaça

"Hey você." Ela digitou no famoso whatsapp.
"Oi, amor." Ele respondeu.
"Como ta?" Aquela pergunta retórica pra ser educada.
"Bem. E você?" Mesmo se não estivesse bem, ele não responderia o contrário, afinal, é uma pergunta retórica.
"Bem tbm." Aparentemente o assunto morreria ali.
"Vai pra Várzea esse feriado?" Uma chance.
"Infelizmente não. Combinei de ir em um sítio com meus amigos." Ela respondeu com uma carinha triste.
"Affe". Ele demonstrou sua indignação.
"Mas vou no sábado de manhã." Então, em uma tentativa de talvez encontrá-lo essa semana ainda, ela jogou a indireta, esperando que ele fosse capaz de ler nas entrelinhas.
Ele visualizou. Não veio resposta. Ela frustrou. Desligou o celular e foi dormir. Mas não fechou os olhos. Ela estaria disponível sexta, foi o que deixou no ar com a frase "mas vou no sábado de manhã". Um cinema? Uma ida a uma praça tomar sorvete? Uma volta no parque? Qualquer coisa ela estaria satisfeita. Ela só queria que ele a chamasse pra sair. Porque ela vive em uma sociedade machista. Porque ela tem medo de ser julgada se der o passo que supostamente ele deveria dar, o cara, o homem, tanto faz. Porque ela mesmo se dizendo feminista teme por interpretações errôneas com destino ao pre-conceito e a criação de uma falsa imagem que ela não suporta mais carregar.
Débora. Muitos pensamentos para um corpo tão pequeno. Mas naquela noite, apenas um único desejo. Uma singela pergunta. "Topa cinema na sexta?"
Então ela dormiu, amanhã seria um novo dia.

Contar Estrelas



Contar Estrelas
Texto escrito por Rebeca Vilaça


Deitada sobre a relva verde, se encontrava uma garota, cujo nome não é importante para o pequeno conto do momento. Olhava para o céu incrivelmente estrelado. Ela contava quantas estrelas conseguia contar, se perdendo várias vezes na contagem. Não se cansava daquela atividade, lhe era aprazível e não lhe fazia ter pensamentos indesejados. O vento tocava-lhe a tez alva, fazendo cócegas em suas bochechas. O tempo estava ameno, nem quente e nem frio. E o cheiro da grama lhe invadia as narinas. Aquela combinação de sensações somada ação de contar estrelas lhe tomavam a atenção. Tentava não pensar sobre o mundo a sua volta, mas sua mente era seu pior inimigo, lhe compelindo a devanear acerca do que não almejava, por isso contava estrelas e por contar estrelas era mais feliz, pelo menos naqueles poucos minutos que não se cansara de conta-las. Contou 68, 110, 200, 345 estrelas. Mas se perdia no meio de tantas e a contagem recomeçava. E por recomeçar tantas vezes que lhe veio a fadiga, e ela automaticamente parou de contar estrelas. Então sua mente voltou a lhe pregar peças, não tão saborosas assim, um pouco amargas. Pegou-se pensando na solidão daquela viagem que havia feito. Uma viagem realizada sem planejar, dentro do carro, voltando pra casa depois da última aula do seu penúltimo período. Uma viagem para um lugar qualquer escolhido aleatoriamente no mapa. Uma mochila nas costas, saiu com o carro a fora. Parou naquela fazenda e se deitou sobre a relva. E começou a contar estrelas. Até que o cansaço chegou e a história voltou pro seu meio, como num ciclo vicioso, o que é redundante, mas para o conto que estou contando sobre a garota da relva o português me permite essa licença poética. Ela parou de contar estrelas e começou a pensar sobre a própria vida. Na solidão momentânea. Faltava algo para aquela viagem ser incrível. Sim, faltava sua cara metade. O responsável por causar aquela estranha sensação de borboletas voando dentro de seu estômago. Aquele responsável por lhe roubar o fôlego em um beijo demorado. Aquele responsável por lhe fazer sorrir idiotamente. Faltava. E ela nunca encontrava. Por isso parou de procurar. Parou de procurar e deixou se encontrar com ele em seus rabiscos, nas palavras soltas de seus contos, nas metáforas que compunham sua vida.
No mundo de sua mente ele lhe dava flores, jantavam à luz de velas, riam de qualquer bobagem dita, aproveitavam a vida como deveria ser aproveitada, intensamente. Ela era intensa. Intensa nas emoções. Intensa nos sentimentos. Intensa na vida. Intensa. Não gostava de meio termo. Era tudo ou nada. 8 ou 80. Amante da vida. Romântica em hipérbole. Sonhadora utópica. Sonhava com um mundo melhor, porque acreditava na existência dele, e quando se acredita, isso torna-se real. Enxergava tudo ao seu redor com óculos colorido, mas sem perder as nuances em preto e branco que manchavam a pintura e a tornavam mais reais, mais palpáveis, ainda que duras e sofridas. Era por isso que não queria parar de contar estrelas. Parava e pensava. E pensava demais. Sem seguir uma linha de raciocínio. Pensava e pensava e pensava. Não se cansava. Mas era preciso parar, caso contrário iria explodir. Então voltava a contar estrelas. E por contar estrelas é que não pensava. E às vezes não pensar lhe dava pequenos, porém satisfatórios momentos de felicidade plena, felicidade proveniente dos detalhes. Contava estrelas para esvaziar a mente. E por contar estrelas é que acabava, no fim, por pensar.

Metáfora das Estações



Metáfora das Quatro Estações
Texto escrito por Rebeca Vilaça

Quando eu te encontrei no verão do meu inverno, achei que poderíamos ser mais do que um simplório outono. Poderíamos ser uma primavera, com toda sua alegria, seu esplendor, sua exuberância. Mas preferimos nos tornar um implacável inverno, escondidos em nossas próprias cascas, em nossas próprias casas, debaixo de cobertores emocionais que julgamos erroneamente serem nossa proteção vital. Eu não o atinjo. Você não me atinge. A gente fere a si próprio. Poderíamos ter sido quentes e cheios de vida como verão. Mas optamos por nos tornarmos frios e distantes como o inverno. Criamos uma barreira de neve para impedirmos que nos aproximássemos mais do que deveríamos um do outro, acabamos por nos afastar. Quando eu te encontrei na solidão do outono, com suas folhas caindo no chão para murchar, procurei implantar a primavera para que você pudesse sorrir, pudesse esquecer daquele verão. Aquele verão que nunca vai sair de sua mente. Aquele longínquo verão que durou primaveras e primaveras. Aquele verão nostálgico. Tentei, tentei, tentei trazer um novo verão, mas o seu inverno apagou todo o calor que eu estava disposta a emanar. Inverno e verão, você e eu. Antagônicos até nas estações. Chame-me quando seu inverno se tornar uma primavera. Prometo não mais importuná-lo com o meu verão. Mas caso o outono chegue para mim, aviso-lhe que será tarde demais, pois estarei me preparando para encarar mais um novo inverno e o verão não terá vez. Traga-me logo seu verão para que eu possa finalmente abandonar o meu inverno. Não demore. Não demore. Venha logo. Quando eu te encontrei no verão do meu inverno, você me mostrou cada peculiaridade das suas estações. E a que eu mais gostei foi ironicamente do seu inverno, afinal, você é o inverno mais bonito que eu já presenciei.

Textuar



Textuar
Texto escrito por Rebeca


Textuar, um neologismo inventado por uma singela criança desprovida de um conhecimento profundo e avançado da nossa língua mãe, que passarei a usar diariamente em meus textos profusos e difusos. "O que vem a ser esse ato de textuar?" Perguntei para aquele pequeno ser de olhos inocentes e linguajar rústico. "Quando o senhor escreve um texto ué." Uma resposta óbvia para uma indagação irrisória. Textuar! É o modo simplório de usar e reutilizar as diversas palavras que constroem um mundo deveras particular. Mundo, o quão mais você pode me surpreender? Acabou de me mostrar um simples neologismo. Gostei. Usarei. Textuarei.

Noite de Inverno



Noite de Inverno
Texto escrito por Rebeca Vilaça
O chapéu descansava em cima de seu cabelo grisalho. Caminhava pelas ruas desertas daquela cidadela onde seus moradores apenas se preocupavam com a vida alheia. Os flocos de neve caiam incessantemente do céu, se depositando com tranquilidade no chão. A lua se encontrava encoberta pelas densas nuvens que tomavam conta do céu acima de sua cabeça. O vento brando, porém, gélido, lhe castigava a tez morena. Um pequeno sorriso estava riscado em seus lábios rachados pelo frio. Ajeitou os óculos no nariz. Continuou sua caminhada pelas ruas, observando através de algumas janelas as pessoas acolhidas em suas casas, aproveitando o calor humano, ou o calor de suas camas, ou da lareira. Viu bonecos de neve solitários, assim como ele, nos jardins. A neve encobria praticamente tudo, chão, telhado, jardins. Era o manto branco da natureza. “É só mais uma noite de inverno.” Pensou o homem, sumindo na escuridão da noite.

A Culpa não é das Estrelas



A Culpa Não é das Estrelas
Texto escrito por Rebeca Vilaça

Você procura o tipo de cara que é simplesmente utópico. Não existe homem ideal. Somos moldados em qualidades e defeitos. Você não pôde se apaixonar pelos meus defeitos como se apaixonou pelas qualidades, porque queria um namorado perfeito, praticamente um príncipe encantado saído diretamente dos contos de fadas. Idealizou e criou uma falsa imagem de mim nessa sua mente fantasiosa. O mundo não é colorido da forma que vê, há nuances em preto e branco necessárias para tornar a realidade mais palpável e menos quimérica. Nem tudo são flores, há espinhos. Mas não vou ficar aqui metaforizando acerca da vida, pois isso não me compete, visto que não sou poeta, sou apenas um frustrado escritor de romances como você amava ressaltar nas nossas famosas “discussões de relacionamento” mais conhecidas pela abreviatura DR.
Na verdade, pergunto-me porque estou lhe escrevendo essa carta. Ah é verdade! Mais um de meus defeitos, ser antiquado! Mas eu já chego nessa parte, paciência! Onde eu estava? Oh sim, na parte em que eu lhe dizia o quão idiota eu sou por ainda me importar contigo, o suficiente para lhe escrever essa carta a fim de dar-lhe uma satisfação decente do porquê terminamos. Eu digo que terminamos para meus amigos, enquanto você diz que terminou comigo. Qual o problema em aceitar que de certa forma chegamos a um consenso juntos de que não dava mais para continuar? Não compreendo esse seu desejo infantil de tentar em vão me humilhar. Não me importo se diz ou não que foi você quem terminou, afinal, que diferença isso fará na minha vida? Acho que alguém ainda não aceitou o fim de uma desgastante relação.
Tenho uma hipótese sobre o fato de você falar que eu nunca lhe dei os motivos reais quando acabamos o que nunca realmente começamos, porque um relacionamento até onde sei é uma via de mão dupla, não única como foi o nosso. Bem, minha hipótese é a seguinte: você esperava que eu fosse atrás de ti quando bateu a porta da minha casa após gritar aquele ridículo “ok”, ao qual respondi com outro ridículo “ok”. Você sabe que nosso “ok” não é como daquela sua história melosa favorita. Não significa “sempre”. Significa o quanto somos orgulhosos e não damos o braço a torcer. Significa o contrário do que se queria dizer. Ao invés de dizermos “não, não está ok, não está nada ok” a gente simplesmente deixa escapar por entre os lábios o frio “ok”. Enfim, no fim, eu permiti que você fosse embora para nunca mais voltar. Não fui atrás de você e lhe pedir desculpas. Desculpas, aliás, pelo quê? Por eu ter tentado te amar do meu jeito?
Sei que não sou um cara romântico, mas tem que admitir que eu ao menos tentei. Te levei para Amsterdã com as minhas economias – que seriam destinadas para um churrasco com os amigos nerds, no qual jogaríamos videogame como se ainda fôssemos adolescentes, enquanto bebemos e rimos alto de alguma bobagem sobre mulheres que foi solta por alguém. Você teve o jantar onde quis e conheceu o museu de Anne Frank. Só não fomos conhecer o tal do Peter Van Houten (chamado de Peter Van Wood) porque ele já se encontra a sete palmos abaixo da terra. Fiz de tudo para deixa-la feliz e mesmo assim não foi o suficiente. Em um piscar de olhos você se esqueceu de Amsterdã. Na verdade, você nunca fez questão de se lembrar dos meus esforços, só se recordava dos meus erros. Difícil encarar um relacionamento dessa forma, não acha? Amsterdã foi literalmente apagada da sua memória, pelo menos ao que parece a mim. Não se preocupe, eu ainda me lembro dessa viagem, afinal, meus bolsos doem até hoje.
Não sou sua mãe, muito menos seu pai para ser obrigado a bancar você e suas vontades de adolescente que espera por um final feliz. Você tem um emprego, aliás, um extraordinário emprego e pode pagar o que quiser com o gordo salário que recebe ao final do mês. Mas não vamos entrar nesse tópico, pois não é o mérito da questão. O que interessa é que eu, como o bom idiota apaixonado que fui um dia, acabei cedendo a uma de suas vontades e paguei nossa viagem para Amsterdã. Você não gastou nem com o bombom da padaria. Todavia, não foi o suficiente para você. Nunca é! Continuou a reclamar dos mesmos assuntos: que eu nunca lhe dei um buquê de flores no dia dos namorados, que eu nunca lhe dei uma aliança no nosso aniversário de um ano de namoro, que eu nunca lhe dei uma cesta de chocolates no dia do seu aniversário.
Quer saber por que nunca fiz isso? Não é porque sou pão duro como você também gostava de ressaltar nas nossas discussões unilaterais. É porque julgo serem gastos totalmente desnecessários. Pense comigo, as flores do buquê murcharão algum dia, pois tudo o que nasce obviamente morre. Agora sobre os chocolates. Eu acho uma hipocrisia enorme essa sua vontade em querer ganhar uma cesta com muitos chocolates dentro, afinal, você vive reclamando que está engordando – o que era uma paranoia sua, pois para mim você estava com o peso ideal. Então prefiro não contribuir para aumentar sua reclamação sobre o quanto você está ficando cada vez mais gorda. Alianças! Ah, as alianças! Sabia que a palavra aliança é um eufemismo para coleira? Sério, qual a necessidade de ter um anel grosso no dedo anelar? Provar pra sociedade que não é mais uma solteirona? Se eu te desse uma aliança estaria indo contra meus princípios que prezam pela liberdade de se viver sem estar pregado a um preceito idiota socialístico. Sim, acabei de inventar esse termo, tenho licença poética no momento pra isso.
Dessa forma retorno ao fato de você me achar um antiquado apenas porque tenho certos pensamentos diferentes da maioria. Lamento se você se interessou pela exceção à regra. Não posso fazer absolutamente nada em relação a isso. Muitas vezes você tentou me moldar ao que julgava ser o melhor para mim sem me perguntar se por um acaso essa mudança me faria feliz e muitas vezes você falhou. Não sou um homem influenciável, tenho opinião própria. Enfim, eu não usaria antiquado para me definir, pois é clichê demais e você sabe o quanto odeio clichê. Talvez um retrógrado ou quem sabe caturra? Não, caturra é demasiado hiperbólico. Pronto, cheguei ao ponto que eu queria. Você me acha antiquado apenas porque sou letrado, evito redes sociais que é uma fábrica de produzir inveja, uso cartas para me comunicar com as pessoas (quer um modo mais bonito que esse?), metaforizo quase sempre. Sinceramente? Não me acho antiquado por isso, sou somente diferente. É tão ruim assim ser diferente?
Com isso, eu digo-lhe que a culpa do nosso término não é das estrelas, é nossa e somente nossa. Nossa, por não termos conseguido nos entender como deveríamos. Nossa, por não termos aceitado um ao outro da forma que somos. Nossa, por trocarmos mais gritos que carinhos, o que colaborou em grau e número para desgastar o que possuíamos. Nossa, por não termos dado um tempo quando foi preciso. Nossa, por não termos nos esforçado para nos amar como deveria ter sido. Não foi a doença câncer que nos separou, foi o metafórico câncer que criamos e permitimos que se espalhasse em nós dois. Eu não te perdi, nem você me perdeu. Eu me perdi e você se perdeu, mas espero que algum dia possamos nos achar e, talvez, quem sabe, reconstruirmos aquilo de bonito que compartilhávamos como um só. Por enquanto, é melhor que fiquemos assim, separados. Alguns infinitos são menores que os outros. E não transfirasua culpa para um ponto brilhante no céu noturno. Tente entender que isso aqui é a realidade, não um livro de romance. Portanto, encerro essa carta fazendo uma singela ressalva: a culpa não é das estrelas.

Colecionadora de Fotos


Colecionadora de Fotos
Texto escrito por Rebeca Vilaça

Ela colecionava fotos, mas não eram quaisquer fotos. Eram fotos daqueles que passavam por sua vida em algum momento e ali deixavam algum tipo de marca. Fotos para se recordar de momentos nostálgicos, revistos apenas dentro de sua mente na companhia de si mesma. Um foi beijo de carnaval, abarcado pelo sabor dos festejos e pelo regozijo de uma paixão veranil. Um momento abarrotado de rebeldia e de prazeres juvenis. Outro foi sob ao som de um rock ensurdecedor ao fundo, com gosto de menta mesclado a nicotina. Ainda havia um estilo rebelde demarcado pela blusa preta caída de um lado e pelo all star vermelho, foi uma ardente paixão primaveril. Um terceiro foi um beijo roubado em meio a uma conversa descontraída de um assunto qualquer esquecido em meio a folhagem repousada na verde grama de um clube. O estilo nesse momento era mais descontraído, roupas de banho e aquela tatuagem marcada no ombro, uma paixão de inverno sob a água levemente fria apesar do sol marcando presença no céu azulado. Um quarto foi um beijo conquistado numa noite de luar, com gosto de vodca e coca-cola. Tantas luzes e pessoas compuseram o cenário daquele momento, envolto por um funk ao fundo e gravado por um poema sussurrado ao pé do ouvido sobre estrelas, uma rápida paixão de outono. Em meio as quatro estações, outras fotos foram tiradas e muitos momentos gravados pela colecionadora de fotos, mas os detalhes ela guardara para si porque não eram traços tão interessantes para serem redesenhados por meias palavras e coloridos por algumas metáforas. Apesar da efêmera felicidade contemplada e saboreada em cada instante fotografado por ela, a colecionadora de fotos anseia desfrutar de uma alegria mais longa. Cansou-se de guardar na gaveta as fotos reveladas de cada sorriso masculino que passara em sua vida e preenchera um espaço em sua história. Ela almejava colecionar fotos de um único olhar, de um mesmo sorriso de diversos ângulos distintos e de traços que só ela percorreria com seus finos e delicados dedos. Aguardava pelo dia que colecionaria fotos de somente um modelo. Ela colecionava fotos até encontrar aquela que alegremente tornaria a se repetir em seu álbum da vida.